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29.3.04

RE-DECLARAÇÃO DE ROMANCE 

A noite nada sabe dos cantos da noite
É o que é como sou o que sou:
E em percebendo isto percebo melhor a mim

E a você. Só nós dois podemos trocar
Um no outro o que cada um tem para dar.
Só nós dois somos um, não você e a noite,

Nem a noite e eu, mas você e eu, sozinhos,
Tão sozinhos, tão profundamente nós mesmos,
Tão mais além das casuais solitudes,

Que a noite é apenas um fundo para nós,
Supremamente fiel cada um ao seu próprio eu,
Na pálida luz que um sobre o outro joga.

- Wallace Stevens
(traduzido para português do brasil por Ronaldo Brito)

22.3.04

Conheço o sal 

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

- Jorge de Sena

16.3.04

i like my body when it is with your 

i like my body when it is with your
body. It is so quite new a thing.
Muscles better and nerves more.
i like your body. i like what it does,
i like its hows. i like to feel the spine
of your body and its bones, and the trembling
-firm-smooth ness and which i will
again and again and again
kiss, i like kissing this and that of you,
i like, slowly stroking the, shocking fuzz
of your electric fur, and what-is-it comes
over parting flesh ... And eyes big love-crumbs,

and possibly i like the thrill

of under me you so quite new


- ee cummings


daguerrótipo: título e data desconhecidos - © Charlie Schreiner

12.3.04

É assim que te quero, amor 

É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz
e sombra és.
Chegastes à minha vida
com o que trazias,
feita
de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há-de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.

- Pablo Neruda


Distortion #88, 1933 - © Andre Kertesz

10.3.04

O Amor bate na porta 

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...

- Carlos Drummond de Andrade


The Road West, 1938 - © Dorothea Lange

9.3.04

Sugar e ser sugado pelo amor 



Sugar e ser
sugado pelo amor
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar e ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.

- Carlos Drummond de Andrade


fotos: The Kiss (Bela Lugosi), 1963 - © Andy Warhol

5.3.04

Lovesong 

He loved her and she loved him.
His kisses sucked out her whole past and future or tried to
He had no other appetite
She bit him she gnawed him she sucked
She wanted him complete inside her
Safe and sure forever and ever
Their little cries fluttered into the curtains

Her eyes wanted nothing to get away
Her looks nailed down his hands his wrists his elbows
He gripped her hard so that life
Should not drag her from that moment
He wanted all future to cease
He wanted to topple with his arms round her
Off that moment's brink and into nothing
Or everlasting or whatever there was

Her embrace was an immense press
To print him into her bones
His smiles were the garrets of a fairy palace
Where the real world would never come
Her smiles were spider bites
So he would lie still till she felt hungry
His words were occupying armies
Her laughs were an assassin's attempts
His looks were bullets daggers of revenge
His glances were ghosts in the corner with horrible secrets
His whispers were whips and jackboots
Her kisses were lawyers steadily writing
His caresses were the last hooks of a castaway
Her love-tricks were the grinding of locks
And their deep cries crawled over the floors
Like an animal dragging a great trap
His promises were the surgeon's gag
Her promises took the top off his skull
She would get a brooch made of it
His vows pulled out all her sinews
He showed her how to make a love-knot
Her vows put his eyes in formalin
At the back of her secret drawer
Their screams stuck in the wall

Their heads fell apart into sleep like the two halves
Of a lopped melon, but love is hard to stop

In their entwined sleep they exchanged arms and legs
In their dreams their brains took each other hostage

In the morning they wore each other's face

- Ted Hughes

4.3.04

Tríptico (excerto) 


Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,

que te procuram.

- Herberto Hélder

fotografia: Guest Series, 1996 - © Christopher Bucklow

2.3.04

Elegia dum incoerente 


Tua Presença
é o todo-inteiro,
real, verdadeiro,
De que a beleza
é um fragmento;
Tua Presença
lembra um Mosteiro,
É como um claustro,
Como um convento
Onde se bebe
recolhimento,
E cada qual
se sente menos
preso da Vida
que a carne tenra
recém-nascida
se prende à vida
pelo cordão
umbilical.

A tua Ausência
é o todo-inteiro
real, verdadeiro,
De que o Inferno é um fragmento;
A tua Ausência lembra as galés,
Traz-nos atados de mãos e pés,
Remando sós pelos infinitos mares deste mundo,
Seguindo o rumo dos Desvairados,
Como proscritos,
Como gafados.
A tua Ausência!
Antes ser cego, antes cativo, antes ser posto num caixão estreito,
Levado à cova
E sepulto vivo.

Tua Presença é como nave de Catedral,
Dum goticismo tão trabalhado, tão requintado,
Que são aladas as próprias pedras das arcarias abobadadas,
E os capitéis das colunatas fogem em bandos, em revoadas ascensionais,
Para aquele ponto,
Exterior ao mundo,
Pra onde tendem as catedrais!

A tua Ausência é um oceano glauco e sem fundo
Onde naufragam os bens do mundo;
É uma imagem tumultuária dos Derradeiros Dias Finais;
É como um campo aberto para a pilhagem das tentações,
Dos desatinos,
Das abjecções;
A tua Ausência é cavalgada desenfreada dApocalipse,
É o remorso de quem celebra,
Com mãos profanas,
Ritos sagrados,
É um telescópio das dores humanas

Tua Presença dimana graças de iluminura;
Foi modelada num raio fulvo de luz sidéria;
Tem os caprichos, as fantasias, duma voluta de incenso em brasa;
Tua Presença foi feita à imagem das vagas névoas,
Sonhos dispersos pelos rutilantes rubros gritantes da madrugada,
E em si resume
O azul doente em que dilui a macerada melancolia do Sol poente.
É essência Pura do ideal,
É um vitral que transfigura raios de Sol
Que correm montes buscando fontes para as calar

Sòmente estou triste,
Pois sei que a Presença que eu canto em bravatas
Com coros de latas e versos quebrados,
Enfim, só existe na minha Elegia, nas minhas bravatas,
Se um dia tombar.

- Reinaldo Ferreira

foto: Guest Series, 1996 - © Christopher Bucklow

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