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31.10.03

É da$ ân$ia$ (ju$tificávei$ ou não) que o Capital reverbera nos Homen$, que re$ulta o bater de$equilibrado e ruido$o do$ pi$tõe$ da máquina $ocial, caracterí$tico do nosso tempo. O dinheiro é hoje mai$ que mai$ uma forma de energia, obediente ao po$tulado de Lavoi$ier - é A MAI$ preponderante. A MAI$ e$gotante de recur$o$ naturai$ e A MAI$ de$truidora de valore$ morai$. A MAI$ intrin$ecamente $UJA.

30.10.03

Sou um jovem socialmente útil e perfeitamente enquadrado. Não sou crente. Não me revejo em partidos políticos. Já possuo a minha colecção de objectos fundamentais, adquiridos através da melhor mecânica capitalista: empregos precários - salários baixos - compras a crédito. Já plantei cerca de uma dúzia de árvores, algumas proibidas por lei. Nunca escrevi um livro mas já co-editei uma fanzine libertária. Nunca fiz um filho mas tenho um sobrinho. O meu peso é o tabelado para a minha altura. Descobri há pouco tempo que para além de todos os meus constituintes de referência sanguíneos, linfáticos e urinários repousarem a níveis saudáveis, o meu coração é um “coração de atleta”, de “ciclista” ou de “corredor de fundo” - palavras do enfermeiro responsável. E assim me surpreendi sem uma série de angústias. A curiosidade acerca do que não conheço de mim, que me levava a pensar em procurar uma psiquiatra, foi consequentemente auto-coibida. Afinal, após ser-me revelado que sou um gajo fisicamente saudável, seria perigoso demais correr o risco de suavizar outro dos poucos dramas que me restam, sustentáculos da benignidade da minha existência. Se tal ocorresse, só me faltava arranjar uma relação amorosa estável e equilibrada para me volatilizar no vazio. Sou levado a compreender muitos seres, subprodutos duma indústria energética social geradora de lucro: um indivíduo precisa de se agarrar a qualquer coisa. Nem que seja à heroína.

29.10.03

Sucesso e fracasso significam apenas e só a satisfação e a frustração de desejos. Os desejos podem ser predominantemente intrínsecos, baseados nas nossas pulsões individuais, ou extrínsecos, estimulados antes de mais pela publicidade e pelos estereótipos sociais que os meios de comunicação e a cultura popular nos inculcam. Tom acha que o meu conceito de sucesso e de fracasso só opera a nível individual, em vez de operar simultaneamente a nível individual e social. Devido a esta incapacidade para reconhecer as recompensas sociais, o sucesso (e o fracasso) não passam para mim de experiências fugazes, uma vez que não têm a sustentá-las a caução social da riqueza, do poder, do status, etc., ou, no caso do fracasso, o estigma da censura colectiva. Assim, na opinião do Tom, não serve de nada as pessoas dizerem-me que eu me safei muito bem nos exames, ou arranjei um bom emprego, ou saí com uma gaja toda giraça; esse tipo de elogio não tem puto de interesse para mim. É claro que eu aprecio essas coisas no momento, ou em si mesmas, mas o seu valor acaba por desvanecer-se porque eu não reconheço autoridade à sociedade que as cauciona. O que o Tom está a tentar dizer, julgo eu, é que eu me estou completamente a cagar para esta merda toda. Mas porquê? (...) Porque é que eu hei-de rejeitar o mundo e achar-me melhor que os outros todos? Porque sim. Porque sou mesmo melhor, foda-se, e chega.

- Irvine Welsh

27.10.03

- “O único caminho possível para melhorar os seres humanos é remover as causas dos seus males. Se a propriedade é a causa de todo o mal, será abolida. Não há crime sem um motivo, nenhum acto sem um objectivo racional que não possa ser explanado e discutido. É isto que torna o problema da propriedade uma questão fundamental em qualquer sociedade, uma vez que a causa mais comum do crime é a satisfação das necessidades da vida. Consinto, portanto, em tudo o que quiserdes.” Baixou os olhos para as suas mãos que aguardavam abandonadas no regaço, depois confessou num murmúrio: - “Gostava de saber se serei chicoteada.”
Outra mulher feiticeira chamada Revolução Francesa, que ouvia um homem tocar com uma flauta de cana, deixa atrás de si o mito da revolução bem sucedida. Doravante será possível a revolução violenta. A revolução seguinte deverá ser uma verdadeira revolução social, e não apenas a substituição de uma classe dirigente por outra. Esta revolução só poderá ser realizada depois de a sociedade existente ter sido minada por uma conspiração de druidas revolucionários devotados.
A sua entrada na esconsa taverna é observada por um velho que está encostado ao balcão integrando um grupo de bêbados de quem se torna imediatamente escrava. O rosto do homem foi destruído pelo consumo de aguardente barata e pela excessiva exposição ao vento gelado que sopra cruelmente do Mar do Norte, fazendo com que seja de todo impossível adivinhar a sua idade. Dir-se-ia que todos os vasos sanguíneos da sua cara rebentaram sob a pele, conferindo-lhe uma aparência semelhante à das salsichas mal passadas que são servidas na Zona. Sobressaltam-na amplexos que lhe parecem imundos, mãos que sobre os seus seios são um intolerável insulto, bocas que aspiram os seus lábios e a sua língua como moles e ignóbeis sanguessugas, e línguas e sexos, bichos viscosos, que acariciando-se na sua boca fechada, no sulco com todas as forças apertado da sua vulva e do seu anús a inteiriçam de revolta, tão demoradamente que o Látego Envenenado de Burroughs não seria demais para a avassalar, mas aos quais ela acaba por se abrir, com um nojo e um servilismo abomináveis. As suas pupilas tornam-se num azul frio, e o branco dos olhos numa cor parecida com a das paredes da tasca.
O temperamento que outrora levou um daqueles homens, talvez mais que um, a adoptar crenças religiosas milenárias e utópicas podia tê-los levado também, agora, a apoiar dogmas revolucionários totalizantes e totalitários - pensa ela, sardonicamente. Fita o velho bêbado e pondera a hipótese de dizer algo; podia levá-lo à rejeição de toda a autoridade e à revolta contra qualquer espécie de estado mesmo antes de concluir que nada tem para lhe dizer.
- “Se depois de ter misturado pó de planta leitosa e da planta kantaka com excrementos de macaco e raiz moída da planta lanjalika, deitar esta mistura sobre uma mulher, ela não gostará de mais ninguém”, sussurra-lhe ao ouvido - negra enunciação mágica.
- “Por outro lado, se quer perfurar o pénis, deve fazê-lo com um instrumento muito aguçado e depois manter-se na água durante tanto tempo quanto o sangue corra. Crenças que levam um homem a aceitar uma ditadura totalitária podem levar outro à completa rejeição de toda a autoridade. À noite, terá relações sexuais, mesmo activas, de maneira a limpar o buraco. Crenças que levam um homem a aceitar uma ditadura totalitária podem levar outro à completa rejeição de toda a autoridade.
Depois disso continuará a lavar o buraco com decocções e aumentá-lo-á introduzindo-lhe pequenos bocados de caniço e de wrightia anidysenterica, que alargarão gradualmente o orifício. Crenças que levam um homem a aceitar uma ditadura totalitária podem levar outro à completa rejeição de toda a autoridade. Por fim, dever-se-á untar o orifício com um pouco de óleo.”

24.10.03

- A verdade é que não sei bem, Tam, não sei mesmo. A modos que faz com que as coisas pareçam mais reais. A vida é aborrecida e fútil. Quando somos novos temos imensas esperanças, mas depois acomodamo-nos. Percebemos que mais dia menos dia vamos todos morrer, sem termos descoberto as respostas às grandes perguntas. Desenvolvemos uma série de teorias chatas que só servem para interpretar a realidade das nossas vidas de diferentes maneiras, mas que não ampliam o nosso corpo de conhecimentos válidos sobre as coisas importantes, as coisas reais. Basicamente, vivemos vidas curtas e decepcionantes, e depois morremos. Preenchemos as nossas vidas com as mais variadas merdas, coisas como a carreira profissional e as relações amorosas, só para nos convencermos que não foi tudo em vão. O cavalo é uma droga honesta, porque destrói estas ilusões. Com o cavalo é assim: quando te sentes bem, sentes-te imortal; quando te sentes mal, intensifica a merda que já estava dentro de ti. É a única droga verdadeiramente honesta. Não altera o estado de consciência de um gajo. Primeiro dá-te um flash e uma sensação de bem estar. Depois disso, começas a ver as desgraças do mundo tal como elas são, e não há modo de te anestesiares contra elas.

- Irvine Welsh

17.10.03

(...) é à patologia que compete decidir se o paciente tem cancro ou não. Os médicos abrem. A tudo o que pareça suspeito, cortam, retiram um pedaço e enviam para a patologia. Enquanto esperam, os doutores brincam com os bisturis que rolam por entre os dedos. Uma luz verde pisca de repente.
- Eh, malta! É maligno, ‘bora, temos que andar depressinha antes que venha alguém.
Daí que no meio desse orgulho de curandeiros à caça, o patologista, pequenino, feio, meio impotente, descobre que um famoso cirurgião lhe anda a pular para cima da mulher. Em consequência disso declara o adúltero cirurgião como tendo feito um cancro da próstata. Toda a gente sabe qual é a cura para isso. O cirurgião acaba castrado, os tomates enviados para a Patologia. Com os tomates do inimigo nas mãos excita-se e faz uma surpresa à mulher, dá-lhe uma foda de chulo das verdadeiras. Mas ainda lhe reserva outra surpresa: quando ela se está a vir mete-lhe os tomates amputados pela garganta abaixo. Como dizem em alemão, unappetitlich.

- William Seward Burroughs

16.10.03

Segundo o que dizem, a função dos sonhos é fazer com que o cérebro desaprenda, ou apague todas as ligações desnecessárias. De acordo com esse ponto de vista, o que se passa na cabeça durante um sonho é uma espécie de limpeza geral como se faz à casa neurológica na Primavera. Também sugerem que tentar evocar sonhos faz mal, pois isso reforça ligações mentais que se querem é eliminadas.
- Sonha-se é para se esquecer - dizem eles.
Mas Joe sabe que os sonhos são uma necessidade biológica. Como o próprio sono: sem ele morreríamos. (...)
Joe detectou e segue atentamente o percurso dos agentes venusianos duma conspiração com um modus operandi e objectivos bem definidos. É antimágica, autoritária, dogmática inimiga mortal de todos aqueles que se devotam ao universo mágico, espontâneo, imprevisível, vivo. O universo que andam a tentar impor-nos é controlado. Previsível, morto. (...)
O lema do programa de governo das elites no 1984 de Orwell era:
«Uma bota a pisar o rosto humano para todo o sempre!»
Que ingénuo e optimista! Nenhuma espécie seria capaz de aguentar e sobreviver nem por uma geração a um tal programa. É que não é um programa tendo em vista a eternização do poder, mas sim um programa de extermínio em massa.

- William Seward Burroughs

15.10.03

A Quem coube a tarefa de nos esmagar?
Esses carrascos, e os seus machados afiados !!!!
E de quem era a cabeça que rolou?
Pelo lodaçal, prenhe de Crocodilos Aligators e Jacarés.

Porque sofreste tu ? Fui eu ?

Sofreste em vão……

Não te atrevas a por nada em causa, nunca!
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voltamos a ele sempre

“ Não sou uma pessoa completa – sou um citadino atrofiado, mais ou menos um falhado um merda sem nada para oferecer . “Meu Deus”, disse ela, “pensas que eu não sabia?”

Charles Bukowski "Mulheres"

O insensível e amável Kim à descoberta de poses teatrais no vacilante cais de acostagem do espaçoporto dum planeta condenado... reflectindo uma defeituosa e insuportável imagem de rapaz em espelho vazio. Um radiante Kim, avestruz sem medo, é criança fugitiva de um velho assustado. Qualquer pessoa que actualmente não ande assustada é porque não tem imaginação.

- William Seward Burroughs

14.10.03

Kafka refere-se a um ponto sem retorno. É dos pontos alcançáveis o mais difícil de atingir. O jogo chama-se Descobrir o Adversário. E o objectivo do jogo do Adversário é convencer as pessoas que ele próprio não existe.
«Para quê toda esta paranóia?»

- William Seward Burroughs

(Automatismo Cognitivo: o Caixeiro do Inferno que procede aos câmbios entre os dois lobos que configuram a minha fenda cerebral, logo se aprontou a trocar a moeda Adversário pelo correspondente peso em Desespero)

13.10.03

Estão de volta ao organismo milhares de imberbes germens saturados de esperança e confiança no devir, enchendo-o de cores que são saberes.
Simultaneamente chegam os palhaços tristes do circo orgânico, vestidos de dentro para fora a preto e branco, ansiosos em fagocitar qualquer réstia de individualidade que dos primeiros se destaque. São os predadores imunitários que defendem a estagnação do seu próprio sistema centenário. São um primário passo lento na fórmula química da evolução.
Como era agradável o estival repouso parassimpático da besta! Como o sinto deteriorado…
Morte à académica-ditadura!

10.10.03

George começou a soltar gemidos debaixo do lenço, em cima do fogão de sala. Marty tirou os slips de Rutie. Puxei Dawn para mim. Era bela e jovem e tinha qualquer coisa lá dentro dela. Podia apaixonar-me outra vez. Era possível. Começámos a beijar-nos. Caí ao chão dentro dos seus olhos. Depois levantei-me e comecei a correr. Sabia onde estava. Uma barata e uma águia estavam a fazer amor. O tempo era um louco a tocar banjo. Comecei a correr. O seu longo cabelo caiu-me sobre a face.
- Hei-de matar toda a gente! – gritou a pequena Anna. Eram três da manhã e ela ainda estava barafustar dentro da gaiola.

- Charles Bukowski

9.10.03

delícias d'álem mar

8.10.03

I started a joke, which started the whole world crying,
But i didn't see that the joke was on me, oh no.

I started to cry, which started the whole world laughing,
Oh, if i'd only seen that the joke was on me.

I looked at the skies, running my hands over my eyes,
And i fell out of bed, hurting my head from things that i'd said.

Til i finally died, which started the whole world living,
Oh, if i'd only seen that the joke was on me.

I looked at the skies, running my hands over my eyes,
And i fell out of bed, hurting my head from things that i'd said.

'til i finally died, which started the whole world living,
Oh, if i'd only seen that the joke was one me.

- the bee gees

7.10.03

beat_itude

6.10.03

Nuovosoma-α 

Desci da minha nave para a rua atrasado, como hábito. O micro-sistema a que se pertence não desliza, normalmente, sobre contemplações. Há uma série de outros macros a marcar o seu passo: metrónomos da nervosa corrente quotidiana. Pisei o chão, ainda mal disposto dos excessivos soníferos ingeridos na noite anterior.
No passado, a corporação que regia a comunidade das bestas, sentada em permanência nos altos cadeirões instalados cefaleicamente na Maior, concebeu que com a aplicação controlada desses catalizadores de repouso seria possível forçar os organitos menores ao descanso exacto que lhes permitiria, na jornada seguinte, o rendimento máximo.
Nuovosoma-α - chamaram ao produto. Outros, apelidados com diferentes sufixos, foram projectados em consequência e também eles viriam a ser regradamente distribuídos pelas sucursais da corporação, para geração dos efeitos mais díspares, entre os quais não dormir, não comer e ser feliz com isso, orgasmo instantâneo, orgasmo progressivo, orgasmo múltiplo, assexualidade, introversão, extroversão, (auto-)confiança, (auto-)desconfiança, etc. Todos foram previstos para aplicação terapêutica, vigiada pelos agentes da Brigada de Higiene.
A corporação entendera pois, e não incorrectamente, que só dominando a doença do seu século - a psicose anti-social violenta - era possível manter o obrigatório aumento periódico dos indicies de produtividade organítica, cuja constante ameaça de quebra era causa primeira da própria enfermidade. Caso contrário seria primeiro o colapso, depois o cataclismo e por fim o apocalipse!
Todas as expectativas da corporação saíram goradas quando um grupo terrorista libertário, num atentado que levou dezenas de anos a desenrolar-se, colocou agentes-clones treinados desde a infância nas melhores Academias Químicas. O resultado a médio prazo foi a infiltração de meia dúzia daqueles nas agências centrais de desenvolvimento dos aditivos sintéticos de rentabilização económico-organítica. O culminar da acção coincidiu com a fase de desenvolvimento de métodos menos dispendiosos de produção, quando os planos dos mesmos foram amplamente divulgados. Qualquer pessoa com um fogão, um exaustor devidamente adaptado, uma panela, uma pipeta volumétrica, três gobelés de dimensões variáveis e uma mão cheia de reagentes adquiríveis em qualquer grande superfície poderia tornar-se num industrial da sensação/acção condicionada.
Ora eu, como muitos outros, estava na posse um fogão, um exaustor devidamente adaptado, uma panela, uma pipeta volumétrica, três gobelés de dimensões variáveis e uma despensa coberta dos reagentes adequados - suficientes para a auto-sustentabilidade do meu excesso pelos trinta anos seguintes e correctamente dissimulados das sondas químicas com que a corporação vigiava o palpitar diário das bestas.
A tentativa de evitar o de antemão previsto colapso acabou por gerar o mesmo. Vivo agora o desenrolar de um alastrante cataclismo. E com os cantos dos lábios torcidos na direcção do céu, enquanto ingiro uma cápsula de felicidade cósmica, espreito pelo canto do olho o apocalipse que transpirando vapores ácidos corre na minha direcção.

2.10.03

sono leve 

“Foda-se assustaste-me. Tava a dormir!” - estremunhou ela enquanto se voltava na cama, de olhos cerrados em busca dos frios lábios que levemente a haviam tocado na face, originando o seu regresso ao estado desperto. Mas nada encontrou.
Estava uma irreverente noite de tempestade invernal e ela deitara-se na cama, aguardando o regresso dele. No telefonema em que a avisou que chegaria tarde sentiu-o estranho. Reservado para além do habitual, talvez. Esfregou intensamente os olhos e deslizou para fora dos pesados cobertores de lã. Em contacto com o ar gélido e com o vazio do quarto a sua pele alva contraiu-se num profundo arrepio. Estava certa que havia sido um beijo que a havia acordado e no momento imediatamente seguinte estava certa de estar confusa. Com a visão ainda toldada pelo sono, pôs um primeiro pé no chão e puxou a coberta sobre o corpo. Adormecera ansiosa, esperando que voltasse. A noite não era a ideal para morosas viagens de carro naquelas estradas de montanha. Por um momento, o do sentir dos seus lábios, desvanecera-se a ansiedade. Agora possuía-a redobradamente. Não se julgava capaz de voltar a adormecer. Talvez um copo de leite quente a relaxasse o suficiente. Pousou o segundo pé no chão e dirigiu-se à cozinha.
Atravessou todas os compartimentos sem acender as luzes, orientando-se a partir das pontas dos dedos que acariciavam gentilmente as paredes ao passar. Ao chegar à cozinha ligou a lâmpada, que explodiu em radiação branca, quase a cegando, obrigando-a deixar apenas uma nesga entre as pálpebras para espreitar. Ao abrir o frigorifico novo arrepio, lento e medular. Ajeitou a coberta sobre o corpo e com uma mão tirou o leite fechando de seguida o electrodoméstico, mantendo sempre a outra mão a segurar o agasalho. Foi ao armário e tirou um fervedor que, uma vez cheio com o alimento, colocou ao lume. Tirou um cigarro do maço em cima da mesa e acendeu-o no interstício entre o fogão e a vasilha, por onde o fogo do gás tentava a fuga. Fumou em travos pausados, pentrantes. Terminado o cigarro e quente o leite, verteu-o para o grande copo transparente, assinado por um famoso designer, que ele lhe havia oferecido no seu último aniversário. Reflectiu se haveria de o tomar ali ou na cama, decidindo-se por voltar para o leito. Ao voltar-se em sentido contrário, pela primeira vez desde que entrara na cozinha, avistou iluminada pelo reflexo da luz nas paredes brancas que a envolviam, a gabardine dele. Pousada no bengaleiro do hall contíguo ao corredor. Molhada. Algo forte tomou conta dela. Olhou para a mesa, para o maço de tabaco e tentou reflectir - quisera fumar antes de se deitar mas nem revolvendo gavetas foi capaz de encontrar tabaco. A ideia ricocheteou com força por dentro da sua cabeça.
De súbito um vulto assoma violentamente a seu lado, surgido talvez da despensa, num só continuo gesto arrancando a coberta dos seus ombros, juntando-lhe as mãos atrás das costas e algemando-as com fita adesiva, a mesma com que lhe veda à altura do pescoço o saco de polietileno transparente que forçou pela sua cabeça abaixo, sem que no estupor da surpresa tivesse sido revelado o mínimo esboço de resistência. Volta-se interrogando o rosto do seu agressor, e consegue vê-lo, a ele, ao que ela esperava ansiosamente, que julgava - e estava certa - ter já regressado. Ao girar desequilibra-se e cai por terra, sobre os punhos que tem presos, debatendo-se violentamente, clamando pelo ar que não lhe chega, em silêncio. Consegue ver a cara dele a mira-la lá de cima, primeiro claramente, depois cada vez mais desfocada pelo vapor de água que se condensou no interior do saco que como um coração taquicárdico pulsa ao ritmo do seu desespero. Deixa de ver o seu rosto, primeiro tudo se torna cinzento, depois uma luz branca, forte, depois nada.
No chão jaze a coberta enrodilhada nos seus pés, o leite que ainda quente fumega sobre o chão gelado, os cacos do copo transparente, assinado por um famoso designer, que ele lhe havia oferecido no seu último aniversário, o seu corpo de face velada pelo plástico e ao lado o maço de tabaco, aberto. Ele aproxima-se, recolhe o maço e retira um cigarro que acende, inspirando longamente, como quem suspira.
“Foda-se assustaste-me. Tava a dormir!” - barafustou ela enquanto se voltava de um salto na cama, de olhos esbugalhados em busca dos frios lábios que levemente a haviam tocado na face, originando o seu regresso ao estado desperto. Ele havia regressado, pingava água da gabardina inclinado sobre a cama de forma a colocar o seu rosto sobre o dela, e sorria-lhe o sorriso pelo qual ela se apaixonara há tanto tempo. Sentou-se, puxou a roupa da cama sobre o corpo o mais que pôde e com as mãos sobre os joelhos beijou-o demoradamente. “Tive o pesadelo mais estranho que possas imaginar...” - diz-lhe, com um voraz arrepio que a percorre, tornando trémula a última declinação fonética da frase.

1.10.03

guy bourdin

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