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27.2.04

Poema 

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

- Mário Cesariny


título e data desconhecidos - © Subir Chatterjee

26.2.04

De profundis amamus 

Ontem às onze fumaste um cigarro encontrei-te sentado ficámos para perdertodos os teus eléctricos os meus estavam perdidospor natureza própria
Andámos

dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros
Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
e há quatro mil pessoas interessadas
nisso
Não
faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso

- Mário Cesariny


The Secrets Of Paradise Dream In You Soul, 2003 - © Elena Ray

25.2.04

 

já não é hoje ?
não é aquioje?

já foi ontem?
será amanhã?

já quandonde foi?
quandonde será?

eu queria um jàzinho que fosse
aquijá
tuoje aquijá.

- Alexandre O'Neill

20.2.04


Bloodscape V, 1989 - © Andres Serrano

19.2.04

Se houvesse degraus na terra... 

Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,
eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia.
No céu podia tecer uma nuvem toda negra.
E que nevasse, e chovesse, e houvesse luz nas montanhas,
e à porta do meu amor o ouro se acumulasse.

Beijei uma boca vermelha e a minha boca tingiu-se,
levei um lenço à boca e o lenço fez-se vermelho.
Fui lavá-lo na ribeira e a água tornou-se rubra,
e a fímbria do mar, e o meio do mar,
e vermelhas se volveram as asas da águia
que desceu para beber,
e metade do sol e a lua inteira se tornaram vermelhas.

Maldito seja quem atirou uma maçã para o outro mundo.
Uma maçã, uma mantilha de ouro e uma espada de prata.
Correram os rapazes à procura da espada,
e as raparigas correram à procura da mantilha,
e correram, correram as crianças à procura da maçã.

- Herberto Helder

18.2.04


Dance, data desconhecida - © Ben Arieh

17.2.04

ESPERO 

Espero sempre por ti o dia inteiro,
Quando na praia sobe, de cinza e oiro,
O nevoeiro
E há em todas as coisas o agoiro
De uma fantástica vinda.

- Sophia de Mello Breyner

13.2.04











Guest Series, 1996 - © Christopher Bucklow

12.2.04

Respiro o teu corpo 

Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.

- Eugénio de Andrade


Guest Series, 1996 - © Christopher Bucklow

9.2.04

poema 

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas do próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

- Mário Cesariny


inspiration, data desconhecida - © Misha Gordin

6.2.04

there are so many tictoc 

there are so many tictoc
clocks everywhere telling people
what toctic time it is for
tictic instance five toc minutes toc
past six tic

Spring is not regulated and does
not get out of order nor do
its hands a little jerking move
over numbers slowly

we do not
wind it up it has no weights
springs wheels inside of
its slender self no indeed dear
nothing of the kind.

(So,when kiss Spring comes
we'll kiss each kiss other on kiss the kiss
lips because tic clocks toc don't make
a toctic difference
to kisskiss you and to
kiss me)

- ee cummings


título desconhecido, 1993-1994 - © Nobuyoshi Araki

5.2.04

i carry your heart with me 

i carry your heart with me(i carry it in
my heart)i am never without it(anywhere
i go you go,my dear; and whatever is done
by only me is your doing,my darling)
i fear
no fate(for you are my fate,my sweet)i want
no world(for beautiful you are my world,my true)
and it's you are whatever a moon has always meant
and whatever a sun will always sing is you

here is the deepest secret nobody knows
(here is the root of the root and the bud of the bud
and the sky of the sky of a tree called life;which grows
higher than the soul can hope or mind can hide)
and this is the wonder that's keeping the stars apart

i carry your heart(i carry it in my heart)

- ee cummings

o farol 

Depois, vi a bruma dissipar-se à medida que me aproximava da margem. Acostei junto ao farol, renovei a minha segurança na solidez do solo, reabasteci-me dos mantimentos e combustíveis consumadamente consumidos, da água de minas profundas com que lavei o sangue dos convés.
Recomposto o meu frágil e arrogante galeão, ergui a bandeira da paz_anterior, desamarrei-me do cais para me lançar – velas desfraldadas – na deriva de um outro oceano_outro – mar verde de felicidade – águas bravas de amor.


the illuminated man - © Duane Michals

4.2.04

Canção do Dia de Sempre 

Tão bom viver dia a dia...
A vida assim jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência...esperança...
E a rosa louca dos ventos
presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...

- Mário Quintana


título e data desconhecidos - © Shoji Ueda

tempolento (circum-navegação) 

O sol vai-se aninhando, o tempo não passa, eu não me entendo. No entanto sei que em breve estarei seguro, ancorado na maré. Vou-me sobressaltando entretanto, perante a impermeabilidade dos códigos em que me descubro cifrado. Sou o falível autómato humano – a obra mais imperfeita da natureza.


Small Woods Where I Met Myself,1967 - © Jerry Uelsmann

3.2.04

Se tu me esqueces 

Quero que saibas uma coisa.

Tu sabes como isto é:
Se olho a lua de cristal,
o ramo rubro do lento outono
em minha janela,
se toco junto ao fogo
a impalpável cinza ou
o enrugado corpo da madeira,
tudo me leva a ti,
como se tudo o que existe,
aromas, luz , metais,
fossem pequenos barcos
que navegam para essas ilhas
de ti que me aguardam.

Pois, ora, se pouco a pouco
deixas de me amar,
de te amar pouco a pouco deixo.

Se de repente me esqueces,
não me procures,
pois estarás já esquecida.

Se entendes distante e louco
o vento de bandeiras que atravessa a minha vida,
e te decides a me deixar na margem do coração
no qual tenho raízes,
tem presente que nesse dia,
a essa hora,
levanto os braços e minhas raízes partem
em busca de outra terra.

Porém, se a cada dia,
a cada hora,
sentes que a mim estás destinada com doçura implacável,
se cada dia a teus lábios escala uma flor
me buscando,
ah amor meu, ah meu ser,
em mim todo esse fogo se repete,
em mim nada se apaga ou se esquece,
do teu amor,
amada,
o meu se alimenta,
e enquanto vivas repousará em teus braços
sem os meus abandonar.

- Pablo Neruda


Martinique, 1942 - © Andrè Kertèsz

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